Caos no Rio Grande do Sul: o capital ceifando as vidas dos trabalhadores.

04/05/2024

Porto Alegre, 03 de maio de 2024.

Os efeitos da destruição promovida pelo modo de produção capitalista já se fazem sentir há muito tempo, em particular no Rio Grande do Sul. Em 2023, o estado já havia passado por um episódio considerado o maior desastre “natural” de sua história, deixando diversas pessoas mortas e feridas, além da perda de bens materiais. Em 2024, já são mais de 235 municípios atingidos, 57 mortes confirmadas, além de diversas pessoas desaparecidas e mais de 10 mil pessoas que tiveram suas casas alagadas ou completamente destruídas, além de animais mortos ou feridos com as chuvas que vem destruindo cidades, campos e estradas.

Não é a ganância humana. Não é desastre natural. É o capital!

A responsabilidade por mais uma tragédia que vem assolando o estado não é da chuva, muito menos da população, e a referida tragédia não tem nada de natural. Mesmo seu caráter de emergência não é natural ou inevitável, mas sim responsabilidade direta das políticas adotadas pelo estado e dos impactos predatórios do capital sobre o meio ambiente. É a burguesia e seu Estado que promovem uma catástrofe ambiental ao atacar e empobrecer repetidamente nossos recursos naturais e ao promover políticas que só aprofundam a exposição e vulnerabilidade da classe trabalhadora às mudanças climáticas, em especial da população negra, indígena, pobre e periférica, constituindo um racismo ambiental.

Não é a humanidade como um todo que está atacando a natureza e provocando a situação caótica vivenciada, também não se trata apenas de uma dificuldade do governo do estado em gerir as ações públicas de proteção aos desastres ambientais. Os verdadeiros responsáveis pela catástrofe são uma parte minúscula da humanidade, que detém os meios de produção, e, portanto, possuem força para promover as tragédias que vivemos. Isso é percebido através das políticas de seus governantes, como Eduardo Leite (PSDB), o qual destinou o orçamento para 2024 de apenas 0,2% para prevenção da crise climática e apenas R$50 mil para Defesa Civil. 

Aumentam os avisos para evacuação de casas, mas sem nenhum plano de prevenção e evacuação posto em prática, mesmo com as experiências de tragédias passadas e alertas climáticos anteriores. A forma de lidar com a catástrofe está sendo o pedido de solidariedade realizado pelo governo e pelas prefeituras de todo o estado, onde a própria população, movimentos sociais e lideranças comunitárias estão se movimentando e fazendo o possível para salvar vidas de pessoas atingidas, pessoas ilhadas e para fornecer o básico àqueles que estão desalojados de suas casas ou que perderam tudo. 

Pela responsabilização do Estado por garantir a exploração desenfreada pela burguesia dos recursos naturais e de toda riqueza gerada por parte dos trabalhadores.

Importante lembrar que a última auditoria cidadã da dívida pública que retrata o orçamento público federal pago em 2023, mostra que, de R$ 4,36 trilhões, apenas 5,99% foram destinados à política de assistência social; 3,69% à saúde; 0,0895% para gestão ambiental, entre outros. Enquanto 43,23% foram destinados ao pagamento de juros e amortizações da dívida pública. Esse cenário de cortes nas áreas essenciais não é novo, mas é selado pelo Arcabouço Fiscal de 2023, do governo Lula-Alckmin, que está mais preocupado em conciliar com os interesses da extrema direita e enriquecer os banqueiros.

Agora, Lula diz que não faltará suporte do governo federal para os resultados da calamidade que a classe trabalhadora do estado está enfrentando, sendo que os mais afetados pelas chuvas são os mesmos que necessitam dos serviços da política de assistência social, saúde e educação que o seu governo vem atacando, com sua política de conciliação de classes. 

E o governo do Rio Grande do Sul é o exemplo prático do papel que o Estado dentro do sistema capitalista vai exercer: ser o balcão de negócios dos grandes empresários, para que se possa gerir esse momento de catástrofe, apenas atuando com medidas paliativas  a tragédia depois que ela acontece. Enquanto continua servindo aos interesses do grande empresariado para manter a exploração dos recursos naturais e da classe trabalhadora.

Precisamos nos apoiar, dando continuidade à solidariedade de classe, lutando por obras públicas de reconstrução das áreas atingidas, pelo fim do Arcabouço fiscal, pela taxação das grandes fortunas, pela construção de moradias dignas, pela indenização às pessoas atingidas pelos alagamentos, e pelo uso de recursos tecnológicos e científicos para a reparação dos estragos e prevenção de novas catástrofes. 

Por uma solidariedade de classe que acolha os trabalhadores gaúchos nesse momento difícil!

A solidariedade é muito importante, mas não podemos esquecer que não faltam riquezas e recursos no mundo, o que falta é a sua distribuição para a classe trabalhadora que os produz. Assim, quando em momentos de crise o Estado apela à solidariedade coletiva, está cobrando da classe trabalhadora os estragos causados pela burguesia. Devemos ter solidariedade de classe, pois só a luta muda a vida, devemos exigir justiça por cada vida perdida e atingida pelas catástrofes climáticas promovidas pelo capital, devemos transformar a dor em luta, e devemos exigir justiça, que virá com a transformação revolucionária da sociedade. 

PARA AJUDAR

Locais precisando de voluntários (atualizado em 04/05 as 15h)

  • Escola Grande Oriente – Rua Wolfram Metzler 600 –
  • CTG Sentinela dos Pampas – Rua Ivo Janson 31

Abrigos – Porto Alegre:

  • Ginásio da Brigada Militar, Av. Aparício Borges, nº 2001, bairro Partenon.
  • Centro Social Padre Leonardi, Estrada Chácara do Banco, nº 71, bairro Restinga.
  • CETE, Rua Gonçalves Dias, nº 700, bairro Menino Deus. 
  • Ginásio Rede Calábria, Estrada Aracaju, nº 650, bairro Vila Nova (somente para pessoas em situação de rua).
  • Escola Estadual Custódio de Mello, Rua Argemiro Oganda Correa, nº 220, bairro Serraria.

Locais e informações para doações:

Porto Alegre

  • Depósito da Defesa Civil Municipal, Rua La Plata, nº 693, bairro Petrópolis.
  • Associação Médica do Rio Grande do Sul (AMRIGS), Avenida Ipiranga, nº 5311, bairro Partenon.
  • Sindicato doa metalúrgicos (Para doações, procurar Cauana Schneider)
  • La Salle São Paulo (Para doações, procurar Adriana Porto)
  • CSSGAPA (Para doações, procurar Daniele Ilha)
  • AABB (Para doações, procurar Roberta Westphal)
  • Prédio 11 da Ulbra (Para doações, procurar Marcelo Reis)

Cachoeirinha

  • Coletivo de Municipários Nós por Nós (Doação pelo Pix Celular: 51 991849836)

Gravataí

  • Oposição Metalúrgica de Gravataí/RS (Doação pelo pix CPF: 01781860076)

Novo Hamburgo

  • Aeroclube Novo Hamburgo, Rua Ana Terra, 10 – Bairro Canudos]
  • FENAC, Rua Araxá, 505 – Bairro Ideal

Santa Maria

  • Vila Resistência, Boteco da Gringa, Av Brasil 501
  • Vila Resistência, Griô Ateliê, Rua Eng. Adi João Forgiarine, 236
  • Centro Desportivo Municipal (CDM)
  • Secretaria do Desenvolvimento Social, Rua Tuiuti 1586
  • Hall da Reitoria da UFSM, Bairro Camobi


Por uma Autodefesa Comunitária

10/03/2023

Quem era estudante da UEFS (Universidade Estadual de Feira de Santana) em outubro de 2022 certamente se lembra do tira-bota de faixas no pórtico da Universidade: Bolsonaristas começaram a rasgar e arrancar faixas contrárias ao ex-presidente genocida, colocadas pelo sindicato docente (ADUFS), sob a alegação de que se tratava de um posicionamento político indevido por parte da instituição. Pouco importou se o STF tivesse garantido direito de livre manifestação de ideias nas universidades[1]. Eles, que vivem de atacar essas instituições públicas, se sentiram confortáveis para, em bandos e com facas, impor pela força como os/as docentes e discentes da universidade deveriam se manifestar. Daí em diante a ADUFS passou a colocar novas faixas e, sucessivamente, bandos noturnos continuaram a retornar e arrancá-las. Organizações estudantis, logo, divulgaram mensagens e vídeos incentivando estudantes que presenciassem tal ato a não só filmarem, mas constrangerem coletivamente com palavras de ordem os tiradores de faixa.

Certo dia, a tática mudou: uma dúzia de bolsonaristas se apresentou no pórtico da universidade em plena luz do dia com um cartaz que dizia que “a Esquerda quer escravizar os estudantes universitários”, em alusão ao fato de que as ideias de seu ídolo não eram bem acolhidas dentro dos muros da universidade. De prontidão, a tática estudantil reverberou entre os estudantes, que espalharam rapidamente a notícia e, após algumas passagens em sala, juntaram-se cerca de 40 estudantes em contra-ato aos bolsonaristas. Daí em diante foi um festival de palavras de ordem que pouco a pouco foram tangendo os “patriotas” até que, numa verdadeira e bela fuga do gado amarelo, o rebanho enrolou sua faixa e se retirou ao som de “recua, fascista, recua!”.

Esse não foi um ato qualquer. Contra-atos são uma das táticas mais utilizadas por organizações históricas antifascistas[2]. O que observamos foi um verdadeiro ensaio de uma política de autodefesa. O que foi defendido, ao contrário do que um liberal possa crer, não foi o mero direito de manifestação, nem as liberdades democráticas – que a lei não pôde garantir frente a uma força material –, mas uma comunidade política com determinadas práticas, ideias e existências ameaçadas pelo avanço da extrema-direita na universidade. Vimos uma comunidade defendendo a si. Materializando determinadas possibilidades dos seus corpos (juntar, gritar, pular, agitar) para proteger outras possibilidades (construir arte popular, estudar formas de vida anticapitalistas, ser sujeito da sua trajetória universitária, se vestir como bem entender, beijar alguém do mesmo gênero). Nada disso a Universidade enquanto instituição nos garante, mas a comunidade universitária se utiliza do espaço universitário para explorar essas práticas. Autodefesa, nesse sentido, pode ser definida como a defesa de si enquanto corpo, mas além, a defesa de si enquanto comunidade.

A experiência da fuga do gado amarelo exemplifica o perigo de quando se outorga a defesa a um ente externo, como a lei ou a polícia. A caneta da lei supostamente protegia a manifestação universitária, mas o que é a força ideal da lei perto da força material de homens armados?[3] Protegeria-nos a polícia, a mesma que permitiu a invasão aos três poderes e massacra e intimida muitos de nós e dos nossos em favelas e quebradas? Estaria em nosso favor os vigilantes, que há pouco espancaram um dos nossos dentro dos muros da UEFS?[4] Nós estudantes e trabalhadores/as, mulheres, negros, LGBT’s, mães, pessoas com deficiência, não podemos nos dar o luxo de não sabermos nos defender enquanto comunidade. Não podemos outorgar ao Estado a responsabilidade de nossa proteção quando é esse mesmo Estado que nos violenta em favor do lucro e da propriedade privada de outras pessoas. No dia da fuga do gado amarelo, os/as estudantes se agruparam e se protegeram porque ninguém mais pôde fazê-lo.

Reivindicar a possibilidade de nos defendermos definitivamente possui suas contradições. Elsa Dorlin fala da sofisticação dos mecanismos de opressão a ponto que transformam “o menor reflexo de preservação em um passo em direção ao sofrimento mais insuportável”[5]. Muitas vezes nos defender significa, a curto prazo, um risco de violência maior. Esse é o paradoxo da preservação de grupos oprimidos. A polícia vê um sinal mínimo de reação na abordagem de um homem negro como justificativa para execução. Às vezes, sendo negro, basta portar um guarda-chuva[6] para perder o direito à vida. É por isso que autodefesa não é sinônimo de reação à violência. Está mais próxima de um conjunto de táticas organizadas de fuga e esquiva da violência. É uma autodefesa mais efetiva evitar um bate-boca com um bolsonarista potencialmente armado do que tentar gritar e crescer para cima dele.

No entanto, há ocasiões nas quais o que vai nos permitir escapar de sermos violentados é o uso dos nossos corpos como instrumentos de violência. O que foi feito com os bolsonaristas no pórtico foi violento. Um uso tático-instrumental da violência contra aqueles que possuem a violência[7] no núcleo estratégico da sua política. Mas toda tática precisa antecipar suas consequências. E se um deles apontasse a arma para os estudantes? E se chegasse um bando muito maior e mais barulhento os intimidando? E se um dos/as estudantes fosse agredido/a? Para ser não

mera reação e sim autodefesa organizada, é preciso que todo tipo de manifestação pública estudantil, sobretudo aquelas nas quais há condições para um confronto real, conte com uma comissão de segurança, que detenha uma política e protocolos de segurança organizados. Devemos sempre estar preparados para o conflito.

O conflito cotidiano é inevitável aos grupos que sofrem violência sistemática, o que os coloca no dever de estar unidos e preparados para autodefesa. Esse foi o caso dos quilombos, dos judeus no Gueto de Varsóvia, dos Panteras Negras, das militantes negras e lésbicas do Combahee River, para citar alguns. Onde houver opressão haverão, no mínimo, técnicas defensivas espontâneas de esquiva da morte. E para cada contexto haverão técnicas diferenciadas, que variam desde fingir que não ouviu um insulto até a se esconder no porão e fazer o mínimo de barulho possível, passando por aceitar um baculejo obedecendo a todas as ordens do policial e o chamando de “senhor”.

Com o avanço da organização coletiva, essas técnicas podem se qualificar em um projeto político que permite não somente uma esquiva da morte, mas um combate à estrutura que mata. Nesse combate, o recurso à lei, à institucionalidade, à polícia, algumas vezes pode ser útil. Mas fazer um uso pontual, tático e pensado das instituições é diferente de conceder toda sua segurança e apostar todas as suas fichas no Estado. Pode ser útil, em dado momento, buscar uma medida protetiva para uma camarada que foi ameaçada pelo ex-namorado. Mas isso de modo algum substitui que ela aprenda como se soltar quando agarrada, quais pontos cruciais do corpo do agressor a se atingir, como correr e se esconder, que durma temporariamente na casa de amigas/os ou camaradas, que busque desenvolver redes comunitárias com preparo para autodefesa organizada, afinal de contas o agressor pode sempre escolher infringir a lei. Não é demais dizer, também, que não é a lei que vai destruir a estrutura patriarcal que determina as opressões de gênero. Pelo contrário, a lei realiza essa estrutura. É a lei que restringe a liberdade de decisão da mulher sobre seu próprio corpo. Foi a lei quem absolveu o estuprador de Mari Ferrer[8]. A lei é a cristalização de uma força material. Sem a força material de uma política antimachista, feminista, classista, organizada e revolucionária que rompa estruturalmente com o estado de coisas atual, a lei continuará a reproduzir e organizar o direito de ser misógino[9].

A miríade de violências do nosso cotidiano, bem como a fuga do gado amarelo, deve ser ponto de partida para elevarmos a reação espontânea à autodefesa organizada. Para avançarmos de técnicas defensivas individuais para a autodefesa de massas e comunitária. Esse é um desafio contemporâneo nessa conjuntura na qual estudantes estão cada vez mais fragmentados, em busca de saídas individuais para a intensa piora nas condições de vida em tempos de uma gestão liberal durante e pós pandemia, que pôs o lucro acima das vidas. Precisamos ser capazes de encontrar saídas coletivas para um problema que não é mais do que um processo de proletarização. O que nos fragmenta e dificulta o estabelecimento de laços afetivos nos ambientes em que estamos é justamente a ofensiva da burguesia na luta de classes: o avanço do lucro deles, nossa pauperização. Para não sermos esmagados na luta de classes devemos reconhecer a existência dessa luta, estuda-la a partir de suas manifestações concretas e encara-la com táticas grupais e organizadas em direção ao fim da dominação de classe.

Como produzir autodefesa comunitária nesse contexto de fragmentação? Como fazer com que a fuga do gado amarelo não seja um caso isolado? Antes de tudo, precisamos nos estabelecer enquanto comunidade. Precisamos investir em eventos que nos grupalizem, fortaleçam as redes afetivas dentro da universidade. A arte e o esporte parecem ser instrumentos efetivos na promoção de grupalização. Mas isso não vai partir da universidade, da institucionalidade, somos nós quem devemos tomar essa iniciativa. Junto a isso, o aprendizado de técnicas de defesa pessoal, artes marciais, ou meramente a realização de um ou outro exercício físico nos limites do nosso cotidiano também podem ser passos pequenos, mas necessário para grandes passos futuros no desenvolvimento de uma autodefesa comunitária. As técnicas devem ser adaptadas às formas de opressão vivenciadas cotidianamente, assim como à variedade de corpos existentes. Existem limites e potencialidades inscritos a cada corpo e a cada contexto – como os limites que variados contextos sociais impõem a Pessoas com Deficiência e as potencialidades que podem ser desenvolvidas no uso do corpo para movimentos diversos quando certo tipo de movimento não é possível. Não devemos buscar um ideal de corpo bem preparado, mas desenvolver aquilo que é possível a cada corpo, em cada situação, para que ele possa defender melhor a si e seus pares.

Desenvolver laços comunitários através de grupalização, saber identificar as práticas opressivas do cotidiano e aprender pequenas técnicas de autodefesa em relação a essas práticas nos parecem ser componentes fundamentais para os primeiros passos de uma autodefesa comunitária no contexto atual. Se a História, até esse ponto, é a história da luta de classes[10], é na elaboração prática de uma verdadeira filosofia revolucionária da luta que sairemos vivos desse conflito em uma nova sociabilidade socialista.

Coletivo Outros Outubros Virão – Núcleo Feira de Santana


[1] https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=394447

[2] Mark Bray, ANTIFA: O manual antifascista, Autonomia literária, 2019.

[3] Fuzis e canetas: o golpismo, a lei e a força – Revista Opera

[4] Outros Outubros Virão OOV no Instagram:🚩 PELA EXPULSÃO DOS VIGILANTES AGRESSORES: a UEFS como reprodutora de racismo e LGBTfobia. | OOV-FSA A UEFS É RESPONSÁVEL pelos últimos…”

[5] Elsa Dorlin, Autodefesa: uma filosofia da violência, Ubu, 2020, p. 14.

[6] PM confunde guarda-chuva com fuzil e mata garçom no Rio, afirmam testemunhas | Brasil | EL PAÍS Brasil (elpais.com)

[7] Para uma análise filosófica da violência, ainda que não-marxista, mas que dialoga diretamente com arte marcial e autodefesa, ver: LUZ, Alexandre Meyer, Por uma Filosofia da Violência, 2022.

[8] Mariana Ferrer: André Aranha, acusado de estuprar jovem no Cafe de la Musique, é absolvido | Hypeness inovação e criatividade para todos

[9] PS: Vocês podem se perguntar o que autodefesa contra violência de gênero tem a ver com luta de classes. Ora, para apresentar um dos aspectos dessa conexão, a submissão doméstica da mulher beneficia em última instância o patrão do marido. Se o marido garante através de violência que a mulher realize todos os trabalhos domésticos e de cuidado, o patrão pode lhe pagar um salário mais baixo uma vez que o marido não precisa gastar com “empregada/o” e esse marido pode trabalhar mais por não precisar dedicar tempo aos cuidados domésticos. Logo, o trabalho doméstico e de cuidado feminino, explorado através de violência pelo marido, em última instância, se converte em lucro para o patrão.

[10] Como Marx e Engels apresentam no Manifesto do Partido Comunista.


Fortalecer a esquerda classista e derrotar o bolsonarismo nas ruas!

06/09/2022

O governo Bolsonaro, com sua política econômica neoliberal, vem massacrando cada vez mais trabalhadores/as em todas as regiões do país. Isso pode ser observado no aumento do subemprego e da precarização do trabalho – que vêm afetando principalmente a juventude – e no agravamento da fome e da quantidade de pessoas em situação de rua, que obteve crescimento em larga escala nos últimos anos. Enquanto isso, os grandes empresários e banqueiros, que dominam o Estado brasileiro, têm lucrado cada vez mais graças às políticas neoliberais desse governo. Os preços do gás, da gasolina, da carne, do leite e de suprimentos básicos para nossa sobrevivência não condizem com a renda média da maioria da população brasileira.

Bolsonaro também é responsável direto pela devastação ambiental potencializada por suas políticas de favorecimento ao agronegócio e afrouxamento nas fiscalizações de madeireiros, traficantes de animais e garimpos ilegais. Além disso, aumentaram os casos de violência contra mulheres, negros/as e LGBTQIA+ e de intolerância religiosa no país, devido, entre outros fatores,  aos discursos de ódio às minorias praticados em seu governo e no combate às políticas anti-opressão.

Durante a pandemia do coronavírus, o presidente adotou uma postura negacionista e anticientífica, propagou informações falsas e  atacou diretamente pesquisadores e as universidades públicas, com isso resultou na divulgação de medicamentos não comprovados para o tratamento da COVID e na morte de quase 700 mil pessoas devido a sua irresponsabilidade na compra de vacinas. A experiência de outros países mostra que esse número seria imensamente menor se não fosse por Bolsonaro.

Diante disso, milhares de pessoas foram às ruas denunciar e pedir o impeachment do presidente, que com sua política genocida afetou de maneira severa a população mais pobre, ou seja, a grande maioria da população.
No entanto, com a perspectiva de 2022 chegando e, com ele, as eleições e a possível candidatura de Lula, os movimentos de rua esfriaram, ou melhor, foram boicotados pelos partidos e sindicatos eleitoreiros. Eles, que poderiam ter continuado a construir as lutas nas ruas e mobilizar as massas, escolheram a tática de esperar Bolsonaro sangrar até as eleições. E até lá? Aliás, caso a chapa Lula-Alckmin seja eleita e consiga assumir o poder, como o povo fica até no mínimo janeiro de 2023? Basta sentar e esperar um grande salvador chegar ao poder para supostamente resolver toda a crise e desgraças que a população vem sofrendo? Aparentemente, quem fez essa escolha acredita que basta, mesmo que não estejamos falando apenas de diferenças ideológicas em relação ao governo atual, mas principalmente de sua responsabilidade direta no aumento da fome, da miséria, da carestia, da violência policial e do fascismo, além das mortes decorrentes de todos esses problemas e da Covid-19.
Agora, às vésperas da eleição, os partidos e organizações de esquerda revolucionária, que não depositam todas as suas esperanças nas eleições e se opõem à chapa Lula-Alckmin, são criticados por não apoiarem essa chapa no primeiro turno. O argumento é que uma vitória no primeiro turno impede/diminui a possibilidade de golpe. Mas será que impede mesmo? Acreditamos que não. A vitória de Evo Morales em primeiro turno na Bolívia, por exemplo, não impediu um golpe. O governo Bolsonaro tem se movimentado de diversas formas para tentar descredibilizar o sistema eleitoral brasileiro e, consequentemente, uma possível vitória de Lula-Alckmin. Acreditamos que, independente de primeiro ou segundo turno, o golpe é uma possibilidade concreta e os fascistas utilizarão de qualquer resultado eleitoral para fazer o que for preciso para se manter no poder. É por isso que a derrota de Bolsonaro nas urnas é uma tática secundária frente à sua derrota nas ruas.

Por conta do caráter conciliador e rebaixado da chapa Lula-Alckmin, ela por si só não possibilita o recuo efetivo do bolsonarismo nem impede a possibilidade de golpe – por isso não votamos nela no primeiro turno. Não devemos ter qualquer ilusão de que o governo Lula-Alckmin trará grandes melhorias para a classe trabalhadora, já que as condições geopolíticas de hoje não são as mesmas dos outros mandatos de Lula. Por outro lado, sabemos que a reeleição de Bolsonaro implica o fortalecimento ainda maior de grupos de extrema-direita através dos aparelhos de repressão e hegemonia do Estado e do desenvolvimento de um Estado que eles dizem ser “liberal-conservador”, mas que na verdade é potencialmente fascista.

Nossa posição enquanto comunistas é sempre a de fazer avançar as lutas de massas. O período eleitoral pode ser utilizado para propagandear os objetivos comunistas e fortalecer candidaturas que façam avançar essas lutas. Esse fortalecimento não tem o objetivo de eleger mais parlamentares que realizem os interesses da nossa classe dentro do Estado, pois esse Estado está apodrecido. Ele não é nosso. A eleição de parlamentares comunistas apenas cumpre a função de denunciar o Estado burguês através de seu próprio aparelho e fortalecer as lutas contra a dominação da burguesia e a favor da tomada do poder pelos trabalhadores e trabalhadoras, inclusive os em formação – estudantes.

O Coletivo Outros Outubros Virão encoraja você a participar das organizações e lutas coletivas contra o bolsonarismo que estejam acontecendo em sua cidade. E que observem quais candidatos fortalecem essas lutas cotidianas da classe trabalhadora e não somente seus objetivos eleitoreiros. As únicas candidaturas à presidência com esse perfil são as de esquerda classista, ou seja, do PCB, PSTU e UP e é nelas que indicamos voto no primeiro turno. 

Fortalecer a esquerda classista é não se submeter às ilusões do social-liberalismo. Entendemos a decisão da maioria prejudicada pelo governo Bolsonaro em apoiar a chapa social-liberal de Lula-Alckmin desde já, visando a diminuição da exploração que viemos sofrendo. Certamente as duas chapas não são a mesma coisa e se configurando esse segundo turno indicaremos um voto tático para a derrota de Bolsonaro também nas urnas. Mas ressaltamos que apesar da derrota de Bolsonaro desacelerar a ofensiva burguesa, ela ainda se realizará através de Lula-Alckmin. O foco deve ser, portanto, a construção constante de uma força de esquerda radical nas ruas.

O golpismo dos militares e o bolsonarismo não podem ser barrados com o voto, mas com organização cotidiana, autodefesa coletiva e atos de rua cada vez maiores. E são essas movimentações que vamos construir.

Pelo fim do bolsonarismo da morte e da fome;

Pelo fim do golpismo dos militares;

Pelo fim da dominação capitalista;

Pela organização cotidiana e autodefesa coletiva da classe trabalhadora!


A tarefa de representação no Movimento Estudantil

30/06/2022

A tarefa de representação[1] no Movimento Estudantil, OOV-FSA

Vivemos um período conturbado como estudantes. Nos últimos anos, diversas demandas aparecem para nós – demandas por mais professores para cursos que podem ficar sem a ula, por mais vagas nas residências universitárias, por restaurantes universitários maiores e minimamente decentes, por um transporte que seja minimamente confortável para chegar às aulas, pela ampliação das cotas, por livros e materiais gratuitos para estudar… Por vezes, simplesmente engolimos todos esses problemas e vamos tentando sozinhos nos manter na universidade. Outras vezes, conseguimos ir nos organizando pra enfrentar tais demandas: fazemos reuniões nos cursos, panfletamos com nossos colegas sobre tais questões, vamos construído diretórios acadêmicos, fechamos pórticos, etc.

À medida que essas lutas por nossa permanência na universidade vão acontecendo, ouvimos com alguma frequência a seguinte pergunta:

“Por que vocês não estão usando as cadeiras que têm nos conselhos?”

É relativamente comum nos dizerem que deveríamos, antes de colocar qualquer denúncia contra a universidade, “levar essas demandas para dentro dos conselhos e colegiados”. Afinal de contas, se temos representação prevista nesses espaços, “por que vocês não estão usando todas as cadeiras para levantar suas pautas?”

Uma primeira coisa curiosa a notar é que frequentemente são os professores que nos fazem esses questionamentos, professores que, coincidentemente ou não, são a maioria absoluta em todos esses espaços[2].

Deixemos, por ora, essa curiosidade de lado. Seria razoável assumir que os professores que nos questionam nesse sentido tendem a estar bem-intencionados, preocupados com nossas questões enquanto estudantes. Além disso, é mesmo uma pergunta importante, pois temos um espaço político reservado pra nós na estrutura da universidade que acabamos não usando. Por que isso ocorre?

Da maneira como os questionamentos chegam pra nós, é como se fosse uma simples falta de vontade. “Vocês ficam aí, fechando pórtico, reclamando nos corredores, mas mandar alguém pros Conselhos Superiores, nada…”. Mas se olharmos melhor para o movimento estudantil, perceberemos que o problema é mais complexo.

Estamos num momento histórico de descenso do movimento estudantil. Nas décadas passadas tivemos diversas ocupações de RU e Reitoria, tivemos movimentos massivos de estudantes em prol de um transporte público melhor, pela implantação das cotas raciais, tínhamos executivas de cursos fortes e atuantes, enfim, um contexto efervescente de estudantes organizados como coletivo e pautando suas demandas de permanência, bem como suas demandas políticas em relação à sociedade. Hoje, quando olhamos ao redor, quantas pessoas vemos no movimento estudantil? Quais ações têm acontecido?

Um movimento estudantil que já contava com poucas pessoas ficou ainda mais combalido com a dinâmica virtual pós-pandemia. Se o movimento estudantil é a forma como os estudantes se movimentam pela universidade, podemos dizer com segurança que hoje a maior parte dos estudantes se movimenta meramente como indivíduos: assistem suas aulas, fazem uma pesquisa aqui e acolá, e seguem sua vida. São poucos aqueles que se movimentam de forma coletiva, ou seja, organizam com seus colegas quais problemas têm, como enfrentá-los, etc. O movimento estudantil não tem tantas forças como já teve.

Alguns podem dizer: “bom, se a gente não tem tanta força, vamos pelo menos garantir as representações, que é o que dá pra fazer”. Poderíamos, assim, tentar compensar a ausência das lutas com a utilização de alguns representantes que buscassem atuar para os estudantes. Contudo, essa não é uma forma adequada ao avanço do movimento estudantil organizado. Se o estudante se movimenta apenas como indivíduo na universidade, os problemas da universidade lhe aparecem apenas indivudalmente: mesmo que bem intencionado, não vai fazer mais do que reproduzir a parcialidade de sua condição.

Além disso, o estudante que está num conselho superior ou similares não vai agir no vazio. Conforme já dissemos anterioremente, todos esses conselhos e órgãos universitários devem reservar 70% de suas cadeiras para os professores. Há uma estrutura de poder que favorece enormemente os interesses docentes dentro da universidade, de modo que um representante estudantil sozinho – ou mesmo um pequeno grupo de representantes – dificilmente conseguirá assegurar os interesses estudantis quando tais interesses entrarem em choque com os professores.

 “Mas veja bem, é possível convencer os professores, talvez buscar uma articulação para essa ou aquela questão. Não é como se os professores fossem nossos inimigos”. De fato, em princípio, não são nossos inimigos. Mas só é preciso convencer aqueles que efetivamente têm o poder de realizar algo que nós mesmos não teríamos. Se você precisa convencer seus pais a lhe deixarem sair de casa, é porque você não tem o poder de sair autonomamente: são eles que podem definir onde você vai. Assim que você more em outro lugar e consiga se manter, mesmo que more com várias outras pessoas numa república, não precisa convencer ninguém de que pode ou não pode ir em tal lugar: sai de acordo com seus próprios interesses.

Assim sendo, a lógica de ocupar individualmente cargos de representação na estrutura universitária buscando atuar para os estudantes tem uma forte tendência a se tornar uma atuação contra os estudantes, pois essa estrutura de poder que favorece os professores tende a anular qualquer investida que seja contrária aos interesses docentes, dobrando as representações às demandas dos professores e forçando-as a aceitar medidas contrárias aos interesses estudantis. Ainda que ocupemos todas as cadeiras reservadas a nós nos espaços universitários, neles estaremos sempre em desvantagem em relação ao corpo docente. Dada essa desvantagem, se a forma principal de movimentação dos estudantes for a representação, há uma tendência cada vez maior de tentar encaixar o que os estudantes demandam dentro dos limites estreitos do que os representantes conseguem pautar individualmente, prejudicando o movimento estudantil como um todo. A isso, chama-se burocratização.

A organização e a representação entre a coletividade e o indivíduo

Enquanto estão dispersos como indivíduos, os estudantes só conseguem fazer as representações aparecerem em sua forma individual. Nessa forma, a tendência é que as demandas estudantis sejam forçadas a se rebaixar para caber nos limites estreitos da estrutura burocrática, determinada por interesses que não são estudantis.

A representação não pode ser útil aos estudantes caso se dê numa lógica individual, pois tende a se burocratizar. Para que seja possível de fato expressar os interesses estudantis dentro da estrutura universitária é necessário que antes da representação haja a constituição de estudantes que se movimentam pela universidade como coletivo: a partir dos problemas comuns que enfrentam, constroem uma visão dessa realidade, elaboram formas unitárias de ação e espaços de organização e, com tudo isso, conformam um grupo coeso ao redor de objetivos de transformação dessa realidade que lhes impôs problemas.

Como coletivo, os estudantes vão construindo lutas pontuais por melhores condições de estudo e permanência: por exemplo, primeiro, se unificam para conseguir a saída de um professor assediador. Quando conseguem, vêem a força que tem e começam a pautar novas coisas: depois movimentações pela conquista de uma sala para os estudantes, mais adiante buscam obter uma diminuição no preço do RU. A cada nova vitória, convencem novos colegas de que essa forma de agir na universidade dá frutos; a cada novo problema enxergado, aproximam pessoas que, até então, achavam que aquele problema era apenas seu, individual. Esse processo de movimentação tende a se chocar com a burocracia universitária: o professor pode ser “coligado” da direção de departamento, que tenta acobertá-lo e jogar panos quentes nos estudantes; a sala que os estudantes reclamam pode ser contestada pelo colegiado em nome de algum grupo de pesquisa que queira usar o mesmo espaço; a reitoria pode alegar que, com o contingenciamento de verbas, não é prioridade diminuir o preço do RU.

No decurso de suas lutas por condições de estudar, vamos percebendo que a estrutura universitária que nos convidava à participação não está do nosso lado. Defende sistematicamente interesses que não são os nossos, inclusive se ancorando firmemente no Estado, seja na justificativa de contingenciamento, seja com o auxílio da repressão quando as coisas ficam mais tensas. Nesses embates coletivos contra essa estrutura de poder dentro da universidade, se torna cada vez mais claro que nossas vitórias dependem fundamentalmente das forças que temos: quantos estudantes conseguimos organizar e quais ações conseguimos mobilizar para afirmar nossos interesses. Na medida em que o próprio Estado se coloca contrário a demandas bastante legítimas – como a necessidade de ampliação de residências universitárias – chegamos inclusive à conclusão de que é necessário um projeto político radicalmente distinto do que está estabelecido em nossa sociedade atualmente para que possamos ter condições básicas de vida.

Vemos, portanto, que o que é determinante para nossas lutas e demandas não é quantas cadeiras ocupamos nos espaços institucionais, mas quão coesos e organizados estamos enquanto coletividade. É o estado das lutas que determina a capacidade da representação: um movimento estudantil fragmentado poderá ter no máximo estudantes que se posicionam individualmente como representantes; um movimento estudantil forte, unido e com consciência do que precisa espalha suas forças através da universidade, podendo – mas nem sempre necessitando – direcionar alguns estudantes para funcionarem como seus olhos e ouvidos nos espaços de hegemonia dos professores.

Os estudantes só podem se desvencilhar da estrutura de poder organizada na reitoria, nos conselhos superiores e departamentais, na medida em que construam sua própria contraestrutura de poder. É porque precisamos reafirmar nossos interesses de forma autônoma e contrária às posições da estrutura universitária que vamos criando uma organização coletiva que é a nossa própria capacidade de poder. Essa contraestrutura – que não é mais do que o conjunto de nós, estudantes, organizados cotidianamente ao redor de objetivos comuns e métodos de ação bem definidos – que determina nossas capacidades, devendo, portanto, ser nossa prioridade nesse momento de reconstrução do movimento estudantil organizado para que possamos afirmar realmente nossos interesses.

Nesse momento, é necessário apontar o objetivo estratégico do movimento estudantil justamente para a construção de organismos de base: organizações coletivas de estudante ao redor de seus cursos ou de suas questões amplas como o enfrentamento ao racismo que possam favorecer a constituição dessa contraestrutura de poder.

Como apêndice dessa contraestrutura de poder dentro da estrutura de poder, a representação se torna mera mensageira: traz, para os estudantes, informações discutidas dentro da estrutura universitária, repassa e defende, nos espaços institucionais, decisões tomadas pela “estrutura estudantil”. É a pressão de fora das representações – passeatas, fechamentos de pórtico, catracaços, etc – organizada de forma cotidiana e perene – se referendando em reuniões de curso, organização de diretórios acadêmicos, grupos de estudo, etc – que cria uma situação onde alguns estudantes podem dentro das representações expressar uma força real do movimento estudantil sem estarem limitadas pela estrutura burocrática da universidade. De “liderança” ou “porta-voz”, a representação se torna um agente, um instrumento para canalizar essa pressão construída pelo movimento estudantil.

É possível que existam estudantes organizados e representação estudantil, mas que mesmo assim ambos não se relacionem de forma orgânica, indicando uma baixa coesão dos estudantes na luta por seus interesses, tendendo a uma representação que não fortalece essa luta.

É necessário, contudo, atentar a algumas coisas. Primeiro, que organização é algo que se constrói cotidianamente. Não basta formalmente ter uma eleição de DA e achar que, por ter alguns nomes na chapa, os estudantes desse ou daquele curso estão organizados. Se o DA se elege, mas não realiza nenhuma atividade com o conjunto de estudantes do curso, quem está mesmo organizado? Se os estudantes do curso enchem em números de 100, 150 as assembleias, mas aqueles que estão em tarefa de representação nem sabem o que aconteceu na assembleia, existe coesão? Portanto, não basta ter ações pontuais – uma passagem em sala aqui e ali, uma conversa de três em três meses entre as representações e o conjunto dos estudantes – para que a organização dê liga. É preciso que esse processo ocorra cotidianamente, com os estudantes na tarefa de representação participando ativamente das tarefas gerais que o movimento estudantil se coloca, buscando ampliar cada vez mais o número de colegas que estão atentos e integrados às demandas que reconhecemos e às ações que propomos para lidar com elas. Só assim as lutas que construímos assumem um caráter transformador que pode, então, se expressar nas tarefas de representação, secundárias às demais tarefas.

Dessa relação orgânica, duas responsabilidades surgem. Primeiro, a responsabilidade da coletividade: é ela que precisa fornecer os objetivos, métodos e instrumentos para a ação correta da representação. Antes de mais nada, deve avaliar estrategicamente se é mesmo necessário deslocar alguém pra representação, pensando dentro dos objetivos que tem atualmente o que se ganha e o que se perde com esse deslocamento, dando clareza para todas as pessoas envolvidas bancarem a decisão, seja de manter sem representações ou seja de enviá-las; caso as envie, deve discutir claramente com as pessoas a serem deslocadas o que devem fazer, entendendo quais as limitações que a pessoa tem para essa atuação e quais potencialidades traz[3]; deve estar constantemente reavaliando essa representação, tendo espaço nas reuniões coletivas para que os repasses sejam trazidos e para que a coletividade pense se os objetivos com a representação estão sendo cumpridos, se a pessoa está desgastada ou poderia cumprir melhores funções em outra tarefa, etc.

Somente quando a representação atua de forma coesa, integrada e cotidiana com o conjunto organizado dos estudantes é possível garantir que sua tarefa esteja realmente a serviço do interesse dessa coletividade. As ações e demandas são definidas não pelo/a representante, mas pelo movimento. A representação apenas serve para repassar informações e fincar uma posição do contrapoder estudantil dentro da estrutura universitária.

Inserido nessa lógica, o estudante que assume uma tarefa de representação tem a responsabilidade de agir para reforçar a conexão orgânica com sua coletividade e seus objetivos. Precisa dar repasse das coisas que ocorrem nos espaços institucionais em que está, sempre dando ênfase naquilo que pode afetar direta ou indiretamente os estudantes; precisa levar pra dentro da burocracia universitária as posições decididas coletivamente, ainda que naquele espaço vá enfrentar resistência e até hostilidade dos professores; precisa sempre pensar se as intervenções que vai fazer estão coerentes com o sentido geral que está sendo construído pela coletividade ou não[4]; precisa estar atento às movimentações que os professores fazem, pois frequentemente eles agem como se fôssemos bobos e tentam diminuir nossas posições; precisa apresentar claramente as dificuldades que tem sentido na tarefa, dando elementos para que a coletividade avalie se é melhor ter essa pessoa em outra função; precisa estar sempre se envolvendo nas ações extra-institucionais da coletividade para não se envaidecer nem perder de vista onde se constrói efetivamente a força dos estudantes, participando de fechamentos de pórtico, passeatas, panfletagens, etc.

O fundamental é garantir momentos onde a coletividade possa direcionar a atividade da representação mediante seus objetivos e em ligação com suas lutas, tendo canais transparentes de repasse de informações e de discussão política para orientar a representação, garantindo um espaço honesto para que o conjunto da coletividade, bem como a pessoa nessa tarefa, possam falar o que pensam e contribuir ativamente com a avaliação do que fazem.

O que é mesmo ser estudante? Notas finais para não esquecermos de onde viemos e para onde vamos

Poderíamos fechar o texto no parágrafo anterior. Entretanto, tenderíamos a perder de vista um elemento importante: compreender os estudantes como um grupo social isolado é ver apenas parcialmente sua condição. Afinal de contas, nossa situação é transitória: estamos estudantes enquanto precisamos nos formar para virar alguma outra coisa.

A maior parte de nós vem de família de trabalhadores. Às vezes, somos os primeiros da família na universidade; outras vezes, até temos parentes graduados, mas que trabalham como assalariados nesse ou naquele ramo. Do mesmo modo, tendemos a nos formar e trabalhar: entramos na universidade pra conseguir um emprego mais bem remunerado. As condições que enfrentamos na universidade estão diretamente relacionadas com essa condição comum que compartilhamos. A falta de verba pra os Bandejões está diretamente ligada com os ataques aos direitos trabalhistas, o transporte público de péssima qualidade afeta quem vai pra universidade como quem vai pro seu trabalho, o salário curto das famílias é o que condiciona as dificuldades de comprar livros pros estudantes…

Portanto, enquanto estudantes, somos trabalhadores em formação[5]. O que aprendemos a fazer na universidade nos qualifica pra o que vamos fazer em nossos trabalhos. Duas coisas importantes decorrem daí.

Primeiro, que os professores, ainda que possam aparecer como adversários pontuais na universidade, não são necessariamente nossos inimigos na luta geral que precisamos travar na sociedade. Conforme já vimos, é a estrutura universitária que impõe posições antagônicas a estudantes e professores internamente ao ensino superior. No que tange às relações sociais mais gerais, provavelmente vamos depender uns dos outros em nossas lutas: seja por educação pública de qualidade, seja por direitos trabalhistas, seja por questões políticas mais amplas, é importante que o movimento estudantil esteja lado a lado com as organizações coletivas de professores para enfrentar o Estado e os patrões e construir um projeto distinto de sociedade.

Segundo, se são as condições que temos enquanto filhos e filhas dos trabalhadores que determinam nossa situação na universidade[6], o estado geral do movimento estudantil não está dissociado do estado geral do movimento político de trabalhadores. A burocratização de que falamos anteriormente não surge nem é restrita ao movimento estudantil: caracteriza todo o nosso período recente de lutas políticas e infiltra as visões que temos de atuação política na universidade. Ao mesmo tempo, na medida em que as lutas estudantis vão ganhando um escopo cada vez maior, elas vão precisar enfrentar inimigos que os estudantes sozinhos não dão conta de derrotar, como governos estaduais ou federais, por exemplo.

Desse modo, os estudantes precisam construir formas de movimentação que estejam conectadas com o movimento de trabalhadores, buscando afirmar suas forças como parte das forças gerais da classe trabalhadora no Brasil. O contrapoder estudantil é uma trincheira do contrapoder social da classe trabalhadora.

Todos esses acúmulos que construímos em nossas lutas devem ser passados de uma trincheira para outra, ainda que cada uma possua suas especificidades. É preciso que construamos uma cultura de organização que, na sua relação com a representação, siga sendo construída por nós mesmo depois que nos formarmos, conformando um verdadeiro movimento revolucionário. Caberá a nós a tarefa de reconstruir a luta política no país, ainda que não o façamos sozinhos. Nós somos aqueles por quem estávamos esperando, durante e após o movimento estudantil.

Abertos para o diálogo e as críticas e firmes na luta,

Coletivo Outros Outubros Virão-FSA


[1] Entendemos aqui, por “tarefas de representação”, aquelas tarefas relativas à indicação de uma pessoa para espaços institucionais deliberativos ou consultivos da universidade: representação nos Conselhos Superiores, participação em reuniões de colegiado, de departamento, etc. Nós, do coletivo Outros Outubros virão não consideramos diretórios acadêmicos e comandos estudantis como instrumentos de representação. Para nós, estes são instrumentos de organização dos estudantes. Quem tiver interesse nesta questão pode solicitar a um membro do OOV a discussão do que está presente em nossa Tese-Guia, em particular sob o item “Instrumentos de organização do movimento estudantil”.

[2] Segundo a Lei de Diretrizes e Bases, que estabelece os princípios gerais da educação no Brasil, todos os órgãos colegiados deliberativos devem ter 70% de professores, sobrando os outros 30% para o resto da comunidade acadêmica. Isso está no artigo 56 da LDB, parágrafo único. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm

[3] Existem pessoas que podem ser mais tímidas, então dificilmente vão conseguir fazer uma fala denunciando ações da reitoria num ambiente lotado de professores que apoiam essas ações; outras pessoas podem ser muito esquentadas, e a qualquer provocação vão entrar no debate, mesmo quando não tenhamos nada a ganhar com ele; ao mesmo tempo que podem ser inadequadas para as funções desse exemplo, veja que a primeira pessoa pode ser muito boa para trazer repasses e a segunda para fazer denúncias agitativas. O que é determinante, portanto, é a relação das características pessoais com os objetivos coletivos. Além disso, todas as pessoas podem desenvolver características a partir dos instrumentos que a coletividade use, então uma pessoa que era tímida de início pode ir desenvolvendo as falas em reuniões, as conversas, a indignação, de forma a superar coletivamente essa timidez. Mais uma vez, o determinante é o planejmaento coletivo e as ações elencadas para tal.

[4] Afinal de contas, nem tudo que ocorre, por exemplo, numa reunião de conselho pode ser previsto pelo coletivo organizado. O representante, em diversas situações, poderá se perguntar: é melhor eu ficar calado ou me posicionar? A resposta só pode ser dada pensando nos objetivos que a coletividade tem com cada discussão: tomar uma posição, mesmo que não prevista, em relação a tal assunto, irá potencializar nossos objetivos ou prejudicá-los? Além disso, é importante sempre repassar claramente tudo que fez ou deixou de fazer para que, em conjunto, se possa pensar se foram ações acertadas ou não, corrigindo as ações equivocadas e projetando os efeitos da atuação da representação.

[5] Isso sem falar no grupo de estudantes que hoje mesmo já trabalha pra conseguir se manter na universidade, o que mostra de forma mais intensa como as determinações comuns da classe trabalhadora penetram o ensino superior. Também há aqueles que estão na universidade pra assumir as empresas da família ou para se tornarem eles mesmos burgueses após a universidade.

[6] Importante perceber que essa determinação não pinta o quadro inteiro. Afinal de contas, as condições de famílias negras e brancas de trabalhadores são diferentes em virtude do racismo; famílias sustentadas apenas por uma mulher impõem condições particulares; a formação social das mulheres tende a constranger muito mais para as falas públicas do que aos homens, dificultando a elas a inserção na unviersidade, etc. Ao mesmo tempo, esse conjunto de determinações se articula dentro da necessidade de se manter pelo próprio trabalho.


Precisamos de um DCE?

07/06/2022

[OOV-Feira de Santana/BA]

Ocorrem nos dias 17, 18 e 19 de maio eleições de chapa única para o Diretório Central dos Estudantes na UEFS. Precisamos, hoje, de um DCE? Antes disso precisamos responder: o que é e para que serve um DCE? Esse instrumento costuma ser definido como “entidade de representação estudantil, cuja função é representar os estudantes universitários e cobrar nossos interesses à reitoria”. Mas de que forma seria possível que 25 estudantes representassem um universo de 10 mil? Cremos que apenas a partir da construção ativa e suporte de boa parte desse universo estudantil. Se a vasta maioria de estudantes, assolados/as pela piora nas condições de vida, não conseguem se implicar politicamente na universidade, a quem um instrumento estudantil como o DCE poderá representar? Como uma gestão de DCE dura apenas um ano, a construção dessa implicação política nos/as estudantes deve ser anterior ao próprio instrumento.
Entendemos que num cenário de desmobilização estudantil, como ocorre na UEFS, a função basilar para um instrumento político é justamente reorganizar essa “base” estudantil que lhe dá sustento. Afinal de contas, sem uma massa de estudantes mobilizados, com qual força poderemos contar para empreender as ações políticas que precisamos para realizar nossos interesses? Um DCE sozinho não é suficiente – nem mesmo um conjunto de DCE’s – para combater as ações de um Estado que retira sucessivamente verbas da universidade pública para investir no fortalecimento da sua própria imagem e da classe empresarial que lhe controla. Esse é o papel do Estado, assim como é o papel da Universidade qualificar força de trabalho e produzir tecnologias para essa classe que domina, não para nós, trabalhadores/as em formação. Essa é uma premissa básica em nossa disputa. Nesse sentido, a função central de qualquer instrumento que se coloque politicamente na UEFS hoje não deve ser “representar” e “cobrar”, mas organizar e reconstruir o movimento estudantil (ME) para uma luta radical e independente da burocracia universitária.
O momento histórico de piora nas condições de vida sob o bolsonarismo, que leva estudantes a desenvolverem atividades remuneradas além das acadêmicas para se manterem vivos/as, é um dos principais determinantes para a desmobilização. O individualismo presente entre estudantes não é meramente fruto do avanço de uma “ideologia liberal”, mas da ausência de uma alternativa política radical de esquerda enraizada no povo trabalhador, dado que o PT optou pelas alianças com a burguesia. Desse modo, as universidades e o ME, que dependiam em larga medida do financiamento dos governos petistas, se enfraquecem com seus erros e sua derrota política. Precisamos de uma alternativa radical e independente. E isso não será construído da noite para o dia.
Acreditamos na necessidade de reforçar a atuação nos locais de estudo, na base (com ou sem entidade representativa formal), a fim de construir força material para os momentos de
luta necessários. Com isso teremos uma atuação prática feita a partir dessas bases e não apenas das direções, o que nos permitirá acumular forças e colocar a categoria pronta para o desenvolvimento das lutas. O Coletivo Outros Outubros Virão defende um movimento estudantil voltado para as e os estudantes, ao buscar nas demandas mais candentes as pautas para o movimento.
O programa da chapa GUETO apresenta pautas necessárias para uma universidade voltada para estudantes e trabalhadores/as, no entanto, não estabelece prioridades entre essas pautas, não estabelece o “como fazer” da luta pelos nossos interesses, o que faz suas propostas parecerem apenas com condições ideais para uma universidade popular. O caminho a ser seguido para atingir esse ideal não é claro. Se ele enfatiza a presença em espaços institucionais, a “conscientização” e a tentativa de reerguer Diretórios Acadêmicos (DA’s) a partir do impulso do próprio DCE, ou seja, de cima pra baixo, a consequência disso não será o fortalecimento das lutas, mas o desgaste dos/as 25 integrantes da chapa que vivamente se colocam para lutar.
Reforçamos que a condição indispensável para lutar por tudo que a chapa propõe é reconstruir o ME da UEFS, logo, não basta que esse imperativo seja um eixo do programa, ele deve ser sua coluna vertebral. Nós, do Outubros, cremos que essa reconstrução deve se dar de baixo pra cima, abrindo mão, por ora, de espaços institucionais, e enfatizando a organização corpo a corpo das demandas imediatas estudantis, e a partir disso criar força para instituir DA’s. Essa tarefa hoje independe da existência de um instrumento como o DCE. Apenas após essa consolidação da base estudantil nos cursos existirá a chance de que um instrumento como o DCE não sugue pela burocracia estudantes hoje dispostos à luta, e consiga de fato aglutinar uma movimentação real e contínua.
Diante desse cenário de pouca organização e desmobilização na base estudantil de nossa universidade, a tendência seria de que a construção da chapa para essas eleições fosse apressada. E foi. A pressa e a existência de uma única chapa são sintomas da dificuldade na articulação estudantil. Por conta disso, o Outubros optou por não disputar DCE no momento e dar os passos pequenos, porém necessários, para reconstruir o ME pela base dos cursos que temos inserção.
Saudamos a disposição das/os integrantes da chapa Gueto em construir a luta estudantil nesse momento de retração, ainda que discordemos da tática de disputar o DCE. Estaremos juntos e juntas nas tarefas que envolvam a articulação cotidiana dos cursos e convidamos tanto a chapa quanto você estudante a dar peso na organização pela base.